quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Ver e não acreditar

                      Fazendo a leitura de mais um romance de Alessandro Baricco, “A paixão de A.”, encontro, mais uma vez, a possibilidade de pensar as questões humanas mais delicadas. Constato novamente que não foi por acaso que Freud, ao ser indagado sobre quem teriam sido seus mestres, apontou a literatura e os poetas.
                      A questão que me move neste momento é um fragmento deste romance. A história gira em torno da vida de quatro garotos (o narrador, Luca, Bobby e Santo) e de uma garota (Andre – que dá título ao livro).
                      Escreverei sobre Luca. Seu pai, tido como um homem deprimido, é mostrado numa cena em que se levanta da mesa, onde a família reunida fazia uma refeição, caminha até a sacada e é visto pela mulher e por Luca, pelo vidro da janela, de costas, um pouco curvado, encostado no parapeito. Quando Luca relata esse episódio ao amigo, diz a ele que: “Eu acho que meu pai vai ali para se jogar. Depois não tem coragem de fazê-lo, mas toda vez se levanta e vai lá com essa idéia”.
                      Muitas coisas acontecem na vida desses garotos e cada um vai respondendo a elas do seu jeito. Até que algo muito forte se dá com eles, envolvendo uma experiência sexual, medo, culpa e vergonha.
                      Sobre Luca, nos é contado que, após um período de isolamento dos amigos, “durante o jantar, levantou-se de repente, para pôr os pratos na pia e, em vez de voltar a se sentar no aparador diante da parede, saiu para a sacada. Encostou no parapeito, onde mil vezes vira seu pai – mas de costas, os olhos na direção da cozinha. Talvez tenha olhado mais uma vez cada coisa. Depois se deixou cair para trás, no vazio”.
                      Passa o tempo. Num dado momento, há um encontro do narrador e do pai de Luca. O pai queria saber algumas coisas sobre os acontecimentos que antecederam a morte de seu filho. Conversam. O narrador não resiste a perguntar-lhe se, quando ele fica na sacada, olhando para baixo, lhe passa pela cabeça se jogar, matar-se daquele modo.
                      O pai sorri, leva um tempo para achar as palavras, alarga os braços e com uma voz simpática lhe diz que olhar as coisas lá do alto lhe deixa relaxado, que sempre fazia isso quando criança. “É uma coisa que me dá prazer. É uma coisa de criança”. E pergunta com doçura ao narrador como é que pode lhe passar pela cabeça uma idéia dessas.
                      Pronto. Sob o impacto dessa resposta, o narrador nos presenteia com seus pensamentos e neles ele está constatando que “nós não temos a menor possibilidade de entender nada, de coisa alguma, em momento algum. Dos nossos pais, dos nossos filhos – talvez de tudo”. 
                      É muito fácil olhar o pai de Luca, “um deprimido”, se dirigindo à sacada, e pensar que ele vai lá para se jogar. É muito fácil olhar para o gesto que Luca fez e pensar que ele o fez como imaginava que o pai tentava fazer. É muito fácil estabelecer relações desse tipo, fazer leituras pelo óbvio, entender pelo aparente. Mas é difícil ter um pai “deprimido”, que caminha até a sacada, e não deduzir que ele vai lá para saltar no vazio. Assim como é difícil ter um amigo que conta que o pai faz isso e quando esse amigo decide morrer, o faz repetindo o gesto do pai, porém, totalmente fora da significação, pois ao invés de olhar com prazer, ele busca a morte.
                      Raramente a vida nos presenteia com a possibilidade de ouvir do outro que algo não significa o que nós entendemos e, muitas vezes, quando ouvimos, não acreditamos. É mais fácil acreditar no “sentido” que damos aos acontecimentos do que suportar o sempre aberto daquilo que nos cerca e nos toca. Sem sentido.


Elisabeth Almeida – psicanalista
bethxxxalm@yahoo.com.br

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